Arlequim: Era dela esta voz?
Pierrot: Esta voz era dela...
Arlequim está imerso na sombra e um raio de luar ilumina Pierrot. Entra Colombina trazendo uma braçada de flores.
Colombina, vendo Pierrot: Tu? Que fazes aqui?
Pierrot: Espero-te, divina... A sorte de um Pierrot é esperar Colombina!
Colombina: Pela terra florida, olhos cheios de pranto, eu procurei-te muito...
Pierrot: E eu esperei-te tanto!
Colombina: Onde estavas, Pierrot? Entre as balsas amigas, tendo no peito um sonho e no lábio cantigas, dizia a cada flor: “Mimosa flor, não viste um Pierrot muito branco...”
Pierrot: Um Pierrot muito triste...
Colombina: E respondia a flor: “Sei lá... Nestas campinas passam tantos Pierrots atrás de Colombinas...” E eu seguia e indagava: “Ó regato risonho: não viste, por acaso, o Pierrot do meu sonho? “ E o regato correndo e cantando, dizia: “Coro e canto e não vejo” - e cantava e corria... Nos céus, ergendo o olhar, eu via, esguio e doente, o pálido Pierrot recurvo do crescente... Assim te procurei, entre as balsas amigas, tendo no peito um sonho e no lábio cantigas, só porque, meu amor, uma noite, num banco, eu encontrara olhar de um triste Pierrot branco.
Pierrot: Não! Não era um olhar! Ardia nessa chama toda a angústia interior do meu peito que te ama Nosso corpo é tal qual uma torre fechada onde sonha, em seu bojo, uma alma encarcerada. Mas se o corpo é essa torre em carne e sangue erguida, O olhar é uma janela aberta para a vida, e, na noite de cisma, enevoada e calma, na janela do olhar se debruça nossa alma
Colombina, languidamente abraçada a Pierrot: Olha-me assim, Pierrot... Nada mais belo existe que um Pierrot muito branco e um olhar muito triste... Os teus olhos, Pierrot, são lindos como um verso. Minh’alma é uma criança, e teus olhos um berço com cadências de vaga e, à luz do teu olhar, tenho ânsias de dormir, para poder sonhar! Olha-me assim, Pierrot... Os teus olhos dardejam! São dois lábios de luz que as pupilas me beijam... São dois lagos azuis à luz clara do luar... São dois raios de sol prestes a agonizar... Olha-me assim Pierrot... Goza a felicidade de poluir com esse olhar a minha mocidade aberta para ti como uma grande flor, meu amor...meu amor...meu amor...
Pierrot: Meu amor!
Colombina e Pierrot abraçam-se ternamente. Há, como um cicio de beijos, entre os canteiros dos lírios. Arlequim, vendo-os, sai da treva e, com voz firme, chama.
Arlequim: Colombina!
Colombina, voltando-se assustada: Quem é?
Arlequim: Sou alguém, cuja sina foi amar, com Pierrot, a mesma Colombina. Alguém que, num jardim, teve o sublime ensejo de beijar-te e jamais se esquecer desse beijo!
Colombina, desprendendo-se de Pierrot: Tu, querido Arlequim!
Arlequim, galanteador: Arlequim que te adora...Que te buscava há tanto e que te encontra agora. Colombina, E procurei-te em vão, mas te esperava ainda.
Arlequim a Pierrot: Ela está mais mulher...
Pierrot num êxtase: Ai! Ela está mais linda!
Arlequim, enfatuado, a Colombina: És linda, meu amor! Nessa formas perpassa na cadência do Ritmo, a leveza da Graça. Teus braços musicais, curvos como perfídia, têm a graça sensual de uma estátua de Fídias. Não sendo inda mulher, nem sendo mais criança, encarnas, grande viva, a Flor-de-Liz de França... Sobe da anca uma curva ondulante que chega a teu corpo plasmar como uma ânfora grega e é teu vulto triunfal, longo, heráldico, esgalgo, coleante como um cisne e esbelto como um galgo!
Colombina, fascinada: Lindo!
Arlequim: E não disse tudo... E não disse do riso boêmio como ébrio e claro como um guizo. E ainda não falei dessa voz de sereia que, quando chora, canta, e quando ri, gorjeia... Não falei desse olhar cheio de magnetismo, que fulge como um astro e atrai como um abismo, e do beijo, que como uma carícia louca... inda canta em meu lábio e inda sinto na boca!
Colombina com um voz sombria de volúpia: Fala mais, Arlequim! Tua voz quente e langue tem lascivo sabor de pecado e de sangue. O venenoso amor que tua boca expele põe-me gritos na carne e arrepios na pele! Fala mais, Arlequim! Quando te escuto, sinto O desejo explodir das potências do instinto, O brado da volúpia insopitada, a fúria,do prazer latejando em uivos de luxúria! Fala mais, Arlequim! Diz o ardor que enlouquece a amada que se toca e aos poucos desfalece, e que, cega de amor, lábio exangue, olhar pasmo, agoniza num beijo e morre num espasmo. Fala mais, Arlequim! Do monstruoso transporte que, resumindo a vida, anseia pela morte, dessa angústia fatal, que é o supremo prazer da glória de se amar, para depois morrer!Pierrot num soluço: Ai de mim!...
Colombina, como desperta: Tu Pierrot!
Pierrot, num fio de voz: Ai de mim que, tristonho, trazia à tua vida a oferta do meu sonho...Pouca coisa, porém... Uma alma ardente e inquieta arrastando na terra um coração de poeta. Na velha Ásia, a Jesus, em Belém, um Rei Mago, não tendo outro partiu através de Cartago, atravessando a Síria, o Mar Morto infinito, a ruiva e adusta Líbia, o mudo e fulvo Egito, as várzeas de Giseh, o Hebron fragoso e imenso, só para lhe ofertar uns grânulos de incenso... Também vim, sonhador, pela vida, tristonho, trazer-te o meu amor no incenso do meu sonho.
Colombina com ternura: Como te amo, Pierrot...
Arlequim: E a mim, cujo desejo te abriu o coração com a chave do meu beijo? A tua alma era como a Bela Adormecida: o meu beijo a acordou para a glória da vida!
Colombina fascinada: Como te amo, Arlequim!...
Pierrot desvairado pelo ciúme, apertando-lhe os pulsos, numa voz estrangulada: A incerteza que esvoaça desgraça muito mais do que a própria desgraça. Escolhe entre nós dois... Bendiremos os fados sabendo o que é feliz, entre dois desgraçados!
Arlequim: Dize: Queres-me bem?
Pierrot: Fala: gostas de mim?
Colombina, hesitante A Pierrot: Eu amo-te , Pierrot... A Arlequim: ... Desejo-te, Arlequim...
Arlequim, soturnamente: A vida é singular! Bem ridícula, em suma... Uma só, ama dois... e dois amam só uma!..
Colombina, sorrindo e tomando ambos pela mão: Não! Não me compreendeis... Ouvi, atentos, pois meu amor se compõe do amor de todos dois... Hesitante, entre vós, o coração balanço: A Arlequim: O teu beijo é tão quente... A Pierrot: O teu sonho é tão manso... Pudesse eu repartir-me e encontrar minha calma dando a Arlequim meu corpo e a Pierrot a minh’alma! Quando tenho Arlequim, quero Pierrot tristonho, pois um dá-me o prazer, o outro dá-me o sonho! Nessa duplicidade o amor todo se encerra: um me fala do céu... outro fala da terra! Eu amo, porque amar é variar, e em verdade toda a razão do amor está na variedade... Penso que morreria o desejo da gente, se Arlequim e Pierrot fossem um ser somente, porque a história do amor pode escrever-se assim:
Pierrot: Um sonho de Pierrot....
Arlequim: E um beijo de Arlequim! (Menotti Del Picchia)